A credibilidade do RenovaBio e dos créditos de descarbonização (CBios) criados pelo programa envolve, em grande medida, a confiabilidade das firmas inspetoras autorizadas pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Afinal, elas são as responsáveis por certificar as usinas e conferir a nota de eficiência energético-ambiental de cada processo produtivo.

Durante a NovaCana Ethanol Conference, que ocorreu em São Paulo nos dias 16 e 17 de setembro, o diretor da ANP, Aurélio Amaral, declarou que a agência constatou que, em alguns processos de certificação para o programa, a firma inspetora agiu como consultora em relação à usina, ação que é considerada incorreta, pois configura em conflito de interesses.

“Não se pode confundir certificadora com consultoria. Estamos atentos a isso, auditando as emissões e os certificados”, declarou. O diretor completou com um alerta: “Não pensem que não temos como checar, já pegamos os primeiros casos e indeferimos as certificações, mandando que fossem refeitas”.

Amaral ainda reforçou a importância das usinas ficarem atentas ao contratarem uma empresa para certificação. Afinal, se for constatado algum conflito de interesses, a agência pode rejeitar o processo e até mesmo aplicar outras sanções – que podem ser desde uma advertência até o cancelamento do credenciamento para atuação no RenovaBio.

Durante o debate, o diretor explicou que o fato que motivou seu alerta foi o preenchimento indevido da calculadora do RenovaBio por uma certificadora, que teria “maior conhecimento e prática no manuseio da RenovaCalc, que não é simples”. Ele explica o ocorrido: “Percebemos que alguns dados foram preenchidos e imputados na calculadora pelo próprio certificador, quando o papel dele é ir até a usina, checar, verificar se a informação colocada pelo produtor – que é quem tem a responsabilidade de preencher a RenovaCalc – está correta e se aquelas informações são verdadeiras”.

Assim, em pelo menos um desses processos, a ANP percebeu que a firma inspetora atuou como consultoria e preencheu os dados. “Quando fomos procurar o responsável técnico pelo preenchimento da calculadora, era alguém da certificadora”, detalha.

Amaral ponderou a sua fala, atribuindo a situação a um processo de aprendizagem: “Acho que foi um erro”. O diretor ainda garantiu que a ANP está fazendo o seu papel de verificação de cada certificação e realizando a auditoria necessária. “A ideia é que tudo isso seja o mais informatizado possível, para que tenhamos a agilidade e a tranquilidade na análise destes dados”, relata.

O novaCana solicitou entrevista com o diretor para maiores esclarecimentos sobre o assunto, mas, até o fechamento desta reportagem, não obteve retorno da assessoria da ANP.

Certificadoras negam acusação

Das seis firmas inspetoras, apenas duas já realizaram consultas públicas para a certificação de usinas: a Green Domus e a SGS do Brasil. Ainda assim, existe a possibilidade de as outras quatro já terem enviado documentações para a ANP, que ainda não as aprovou. Além disso, no momento da declaração de Amaral, o Benri ainda não havia sido autorizada para atuar no programa.

Presente no evento, o sócio-fundador da Green Domus, Felipe Bottini, comentou a polêmica durante sua palestra. “Eu devo me posicionar. Não sabemos quem foi a firma inspetora que fez consultoria, mas sabemos quem não foi: a Green Domus. É bom que vocês saibam disso”, declarou.

Por sua vez, o gerente de negócios de sustentabilidade da SGS do Brasil, Fabian Peres Gonçalves, fez a seguinte declaração sobre o tema: “Sobre essa questão de consultoria, é muito claro que isso não faz parte do nosso escopo de atuação”. Além disso, de acordo com ele, aproximadamente 70% das usinas que são clientes da SGS já possuem consultorias especializadas. “Surgiu um mercado e as usinas têm buscado isso dentro do processo”, relata.

 Procurada posteriormente pelo novaCana, a SGS não quis dar entrevista sobre o assunto e se limitou a afirmar que “não fez serviços de consultoria, conforme caso citado por Aurélio Amaral durante a conferência”.

“Conflito de interesses não é aprendizado”

Felipe Bottini, em entrevista ao novaCana, rebate as ponderações de Amaral e afirma que considera a situação muito grave e distante de “um erro por processo de aprendizagem”. “O princípio da certificação é a independência; ou seja, eu vou verificar o trabalho que alguém fez para ver se está adequado ao programa. Quando a firma inspetora faz a consultoria e também a auditoria, ela passa a verificar o trabalho que ela própria fez”, considera.

Bottini ainda destaca que a questão não é inerente ao RenovaBio, estando presente em todas as certificações. “Se eu certificar, eu não posso fazer a consultoria. O que me deixa preocupado é que isso não é algo novo, já que as certificadoras sabem que não podem fazer isso. É o item número zero da cartilha”, considera.

Ele também declara que a fala de Aurélio Amaral “o obrigou” a reforçar que não foi a Green Domus que realizou a atividade indevida. Além disso, ele considera que a postura da agência foi a falha mais grave no processo. “Não é um problema que se gerencia mandando fazer de novo. Isso é gravíssimo. Não é uma questão de falha técnica”, afirma.

Bottini, porém, pondera ao dizer que está confiante de que a ANP deve dar uma “sinalização clara” de que a atuação como consultoria não pode ocorrer. “A nossa expectativa é que a ANP conduza isso com o rigor do regramento e que tome a medida cabível. Tem que ser exemplar porque o programa está começando”, alega.

“Conflito de interesses não é aprendizado. Essa eu não compro. Certificadoras fazem certificação há 100 anos, todo mundo sabe que não pode fazer isso e que é gravíssimo”, Felipe Bottini (Green Domus)

O diretor técnico do Instituto Totum, Fernando Lopes, reforça que é uma questão de seguir o regulamento: “A regra que foi definida pela ANP nada mais é a que prevê isenção de conflitos de interesses de toda a atividade de certificação no Brasil e no mundo”.

Lopes acredita que a ANP, ao constatar o erro, tomará a ação correta e investigará o nível de criticidade. “Pode ser um simples erro formal, um desentendimento, alguém que fez um preenchimento indevido e nada de grave pode ocorrer. Pode ter sido uma responsabilização da firma inspetora por algo que não deveria”, pondera.

O sócio diretor da KPMG, Ricardo Zibas, por sua vez, tem um posicionamento mais firme e similar ao de Bottini. Para ele, a questão fere os princípios do programa: “O principal risco que você tem é auditar o seu próprio trabalho”.

Zibas ainda aponta que há um desconhecimento da parte das usinas quanto ao trabalho da certificadora. “Fui perguntado várias vezes se a KPMG poderia fazer as duas coisas, pois muitos clientes preferem contratar uma única empresa, porque dá menos trabalho. E tem empresas, que eu não saberia dizer quais são, que se aproveitam disso”, detalha.

Ele corrobora com Bottini ao não considerar o erro que motivou a fala de Amaral como um desconhecimento do processo. “Eu acho que existe um oportunismo”, diz. “Não é desconhecimento da regra no RenovaBio e sim de regra de auditoria”.

O coordenador de projetos do Benri, Thierry Couto, complementa que existem diversas empresas e profissionais que oferecem serviços de consultoria para as usinas em relação ao RenovaBio. De acordo com ele, as usinas necessitam de “apoio e direcionamento”, a fim de “facilitar o caminho para a certificação”.

Ainda assim, ele reforça: “Quem presta serviço de consultoria para um determinado cliente em um certo escopo não pode auditar e certificar este mesmo cliente neste mesmo escopo”.

O peso da certificação

Outra preocupação expressa por Bottini e Lopes é a implicação de uma auditoria feita de forma errônea ou descomprometida. Segundo Bottini, no Brasil, a certificadora dá a última palavra e raras vezes é auditada. “Ela passa a ser a dona da bola e leva isso para todos os programas”, expressa.

Já conforme o diretor técnico da Totum, o cuidado precisa ser redobrado no RenovaBio, pois o resultado da certificação, adiante, se transformará em um ativo financeiro. De acordo com ele, além do Inmetro e da ANP, que são acreditadoras no programa, existem estruturas de mercado que exigem uma credibilidade ainda maior das firmas inspetoras.

“Se alguém começa a desconfiar do método de avaliação, de inspeção, cai tudo por terra. Temos que cuidar bem do nosso mercado”, declara Lopes.

Bottini também compara o programa a outros tipos de certificação, como a de inventário de emissão de gases do efeito estufa, quando a certificadora confere um selo à empresa. Nestes casos, o máximo a ser feito é dar publicidade ao fato. “Se aquela informação está certa ou errada, não tem repercussão, nem consequência”, afirma e contrapõe: “No RenovaBio, a nota que vier no certificado vai virar dinheiro e quem é obrigado a comprar esses certificados quer ter certeza de que está comprando algo legítimo”.

Ainda de acordo com ele, a ANP sabe destas questões e está levando o programa a sério. “É muito mais complicado você negligenciar aspectos de certificação em um programa que mexe com recursos financeiros”, completa.

O preenchimento da calculadora

De acordo com Amaral, o caso identificado pela ANP como a prestação de um serviço de consultoria por uma firma inspetora foi o preenchimento da RenovaCalc, a calculadora do RenovaBio.

“Existe uma pressão grande das usinas, até por falta de entendimento de como funciona o processo, para que quem faça a certificação ajude a preencher [a RenovaCalc]. Essa linha de ‘ajuda’ é muito tênue”, explica Zibas, da KPMG. Ele exemplifica: “A usina só quer saber como faz, quer ‘só uma forcinha’. Mas a resposta é sempre não”.

Bottini, da Green Domus, também considera a linha tênue. Ele detalha que, se a firma inspetora notar que o cliente preencheu a calculadora erroneamente, seu papel é retornar o documento para a usina, que deve consertar. Ou seja, a certificadora nunca poderia preencher ou alterar qualquer campo.

“Eu não posso dizer que valor a usina deve colocar, nem posso gerar um dado para o cliente”, afirma. Segundo Bottini, o máximo que a certificadora pode fazer é dizer onde a usina pode buscar a informação. Porém, ele alerta que essa interação faz parte de uma segunda rodada de análise, quando a usina já preencheu toda a RenovaCalc e a enviou para a firma.

“Agora, se eu entendi bem, o que o Aurélio disse foi que a firma inspetora preencheu a RenovaCalc de saída. Isso é gravíssimo”, diz e completa: “Sei que existem níveis de compromisso de certificadoras no mercado, diferentes níveis de conduta e de exposição a riscos. Agora, nesse nível, eu não esperaria ver, é muito grave”.

Couto, do Benri, concorda que não é permitido que a firma inspetora influencie ou direcione o preenchimento da RenovaCalc. “A responsabilidade pela definição do escopo de certificação e pelo preenchimento dos dados na calculadora é única e exclusiva do produtor de biocombustível. O mesmo vale para as correções de eventuais não-conformidades que são levantadas ao longo do processo de auditoria”, reforça.

Determinando o conflito de interesses

Segundo Lopes, do Instituto Totum, para que não ocorra um conflito de interesses entre a usina e a certificadora é necessário fazer diversas verificações antes de iniciar o processo. Caso elas indiquem que existe o conflito, o correto é negar o serviço.

A primeira destas verificações é analisar se a empresa já fez algum tipo de trabalho para a usina. Se sim, isso não necessariamente se configura como conflito de interesses. “Estou sendo contratado para uma auditoria do RenovaBio, mas eu já fiz auditoria ISO 9000. São duas atividades de certificação”, exemplifica.

Se não há conflitos na primeira verificação, é preciso saber se alguma empresa coligada, próxima ou em que os sócios possuem algum tipo de participação já fez algum tipo de consultoria para a usina. A terceira etapa é conferir se qualquer membro da equipe fez algum tipo de serviço na unidade que será auditada.

“Temos que checar a conformidade dos avaliadores, dos inspetores e de empresas prestadoras de serviço”, declara e relata: “Já tivemos um caso de que a mesma empresa que nos presta serviço para checagem de satélite fez os trabalhos para a usina. Automaticamente eu não posso usar essa empresa”.

Outra situação ocorrida com o Instituto Totum é o funcionário da certificadora ter algum familiar próximo que trabalha na direção da usina. Neste caso, relações familiares nos níveis de operação normalmente não se configuram como conflitos de interesses, mas nos níveis de comando, sim.

O diretor técnico também destaca a importância da postura da equipe da firma inspetora. “A equipe está lá para fazer a inspeção, não para ajudar a usina. As unidades têm que contar com a sua própria competência e, eventualmente, com a de uma consultoria que elas tenham contratado”, determina.

Lopes também relata que já recebeu propostas das usinas para fazer uma pré-avaliação, um procedimento informal. “Também não podemos fazer. Nós nos abstemos de dar qualquer tipo de ajuda ou assessoria; para isso, existem empresas especializadas”, afirma.

O que diz a lei

A proibição das firmas inspetoras atuarem como consultoria está presente na Resolução ANP n° 758, de 23 novembro de 2018, e também em um informe técnico da agência sobre procedimentos para certificação da produção ou importação eficiente de biocombustíveis.

O artigo nº 15 da resolução determina: “Fica vedada a contratação de pessoa física ou jurídica que tenha prestado consultoria relacionada à implementação do processo de certificação de biocombustível ou que tenha feito parte do quadro de trabalhadores, do quadro societário ou atuado como conselheiro da empresa objeto de certificação no período de dois anos anteriores ao início do processo de certificação”.

Responsável técnico pelo RenovaBio na Fundação Carlos Alberto Vanzolini, Felipe Coelho também observa que o informe técnico reforça o mesmo tópico, acrescentando que os profissionais que prestarem serviços de consultoria, ministrarem treinamentos ou realizarem pré-auditoria ao RenovaBio para as usinas não podem atuar no processo de certificação, pois isso também configuraria em conflito de interesses.

“Quando você pega todas as normas, elas sempre têm requisitos relacionados à imparcialidade. Seguimos esses mecanismos há algumas décadas e é normal para nós”, expressa Coelho.

FONTE: NovaCana

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